I believe I can fly, I believe I can touch the sky

Desde que enviei o meu instrumento de “trabalho” para a actual estância de férias e iniciei estas famigeradas voltas na zona do Säntis; um pensamento não parava de zurzir na minha cabeça.

Quando é que te decides a subir ao Säntis via teleférico a partir de Schwägalp e a descer via caminho pedonal?

O tempo foi correndo e por diversos motivos, o projecto foi ficando em standbye, até que no fim-de-semana passado à semelhança de D.Pedro dei o “grito d’Ipiranga”. Meus Senhores, só ou acompanhado, vou fazer a caminhada, quem quiser vem, quem não quiser, fica! La Palisse no seu melhor 😊.

Tal como na “real life”, por vezes temos de ser duros nos nossos propósitos, correndo até o risco de sermos mal interpretados, para atingirmos os nossos objectivos.

As condições climatéricas para a zona do Säntis, degradam-se de dia para dia, estando para breve a queda de neve, pelo que o dia escolhido, permitiu aproveitar a última folga conjunta de todas as tropas.

Como mentor do projecto, preparei e entreguei às tropas uma lista da indumentária a levar, assim como do respectivo material e bens alimentares.

Uma vez que o Säntis não fica propriamente aqui ao lado da minha estância, tive o cuidado de organizar uma “check list” do horário com todas as mudanças inerentes, que passo a descrever (servirá de linha orientadora futura a quem desejar efectuar este trilho), para que compreendam que todos os passos estavam interligados; sendo que o atraso num, poderia comprometer ou mesmo inviabilizar o resto da aventura.

08h00-Saída da minha estância (Waldegg) até Teufen, via Táxi

08h24-Saída de Teufen até Appenzell, via Metro

09h30-Saída de Appenzell até Urnäsh, via Metro

10h10-Saída de Urnäsh até Schwägalp, via Autocarro

10h30-Apanhar o teleférico com destino ao topo do Säntis

12h00-Início da caminhada

16h40-Saída de Schwägalp com destino a Urnäsh (último Autocarro)

17h37-Saída de Urnäsh com destino a Appenzell

18h08-Saída de Appenzell com destino a Teufen

18h32-Saída de Teufen com destino à minha estância (Waldegg)

Salvaguardei sempre uma margem de manobra de 5 a 10 minutos entre mudanças de meios de transporte e para a caminhada propriamente dita, atribuí 4h30, ou seja mais uma hora do que o que está estipulado nas placas indicadoras, isto para cobrir qualquer eventualidade.

Dados da caminhada

Ponto de referência Inicial: Posto emissor do Säntis (2’505 mts)

Ponto de referência a Meio: Pousada de Montanha Twerties (2’085 mts)

Ponto de referência Final: Base das Operações Schwägalp (1’360 mts)

Tempo de duração previsto: 3h30 a descer, porque a subir e devido ao grau de inclinação, acredito que esta aventura deva demorar mais uma hora.

Desnível vencido: 1’145 mts

Distância percorrida: +/- 10 kms

Temperaturas previstas: 1°C no topo e 4°C na base

O dia acordou com um nevoeiro cerrado. Não conseguia ver o Säntis a partir da minha estância. Uma vez que as tropas não davam sinal de vida no átrio de entrada da estância à hora combinada, toca a ir ver o que se passava. Primeira surpresa do dia, o “Newbie” (camarada português com cerca de 20 anos, que chegou recentemente à estância) ao invés de trazer umas botas de caminhada já “calejadas”, calçou umas recentemente adquiridas e com sola não aconselhável para a caminhada (demasiado fina e flexível), assim como vestiu umas calças demasiado largas na base e em todo o corpo e que ainda por cima, arrastavam no chão (estão a ver o postal).

Não comentei, sorri e pensei cá para comigo (Anda meu Melrinho, que não sabes o que te aguarda, logo falamos.)

Posto isto, lá seguimos via metro para Appenzell. As tropas e eu próprio estávamos apreensivos, uma vez que o nevoeiro teimava em não dissipar.

Em Appenzell segunda surpresa do “Newbie”. Ao invés de utilizar o túnel que dava acesso à nossa linha, passa por cima das diferentes linhas, borrifando-se para o respectivo sinal de proibição, escrito em 4 línguas, assim como para as nossas chamadas de atenção. Um português ao seu melhor estilo.

Novamente não disse nada, apenas comentei com o meu camarada Orlando Gomes que a estupidez, paga-se caro e que há formas mais simpáticas de se por cobro à vida ou mesmo de doar dinheiro.

Chegados a Urnäsh e enquanto aguardávamos pelo autocarro que nos iria levar a Schwägalp, encetei conversa com um casal que vinha de Genève e que pela 2ª vez ia ao topo do Säntis, já que da 1ª, estava muito nevoeiro e não conseguiram ver nada.

Chegados a Schwägalp, o teleférico já nos aguardava. Aqui também o raio do nevoeiro, não nos largava. Como só desejávamos adquirir um bilhete somente de ida, a funcionária do guichet, num inglês “macarrónico” após olhar para a nossa indumentária, sobretudo para as “traineiras”, informou-nos que as condições do terreno (neve e gelo), não nos iriam permitir efectuar o percurso em total segurança. Fiquei na dúvida e toca a comprar bilhetes de ida e volta, enquanto isso, o pessoal na fila a mostrar laivos de impaciência, com medo que o teleférico partisse sem eles. Tenham calma meus amigos, que isto está tudo controlado e este pessoal necessita maximizar cada viagem!

Durante a subida, só nevoeiro, fotos “népia”. Está bonito e as tropas a desesperar. Olho para o casal de Genève e vejo o semblante carregado, como quem diz, porra, outra vez o mesmo (pois é meus amigos, o Säntis é umas das montanhas com o clima mais inóspito da Suiça).

Mas eis que por volta dos 1’700 mts, faz-se luz e passamos por cima do nevoeiro. Via-se estampada nos rostos das pessoas, a alegria por este momento tão desejado.

Enquanto prosseguia a viagem, toca a tirar fotos dos diferentes ângulos possíveis e com uma certeza na mente, vamos fazer o raio da caminhada.

Chegados ao Säntis, continuei a documentar quer no interior quer no exterior os diferentes cenários e paisagens (gosto de tirar muitas fotos, sob diferentes perspectivas, de forma a ter matéria para seleccionar as melhores. Afinal o equipamento é digital).

Cá fora, estava um frio de “rachar” e o vento, nem vos conto; afinal a meteorologia não se tinha enganado. Perante este cenário, instalou-se novamente a dúvida (Ir ou não Ir), pelo que resolvemos efectuar uma última votação ao almoço (neste caso pic-nic).

Enquanto efectuávamos o pic-nic no interior da estrutura, vejo chegar um casal de montanhistas, todos vestidos a rigor (botas especiais, fatos térmicos, arneses, mosquetões, capacetes, cabos de ligação, etc…). Penso para comigo (estamos fod…s, feitos ao bife), sim porque como líder da aventura, não podia deixar transparecer as minhas emoções às restantes tropas. Vou ter com o casal e indago o mesmo sobre o grau de dificuldade. Estes olham para mim e para os meus camaradas, deixando transparecer um certo sorriso, quando o olhar bate no “Newbie”. Mesmo assim, disseram-nos que era “faisable”, isto desde que tomássemos as necessárias precauções. Informei-os que “Caution” era o meu “middle name”.

Vou ter com os meus camaradas e informo-os dos termos da nossa conversa, “olvidando” alguns pormenores. Convinha manter a moral das tropas em alta.

Não sendo nenhum montanhista profissional, defini e apliquei algumas medidas baseadas em experiências anteriores, que passavam por:

1-Posições a ocupar na caminhada: à frente o Orlando Gomes (pessoa em quem confio no que toca a segurança, com bom sentido de orientação e com quem já privo aqui há quase um ano e em Portugal, perdi a conta); no meio o “Newbie” (pessoa que ainda estou a aprender a conhecer e cujas atitudes demonstradas hoje, me levam a ter muitas dúvidas sobre o respeito das normas de segurança); a fechar “moi-même”, para ter tempo para tirar fotos, sem atrasar a cadência de andamento e fazendo jus ao nome Bravos do Pelotão, responsabilizar-me pelo “Newbie”.

2-Distância de segurança: ficou definido que entre elementos a distância mínima seria de 5 a 10 mts e a máxima até 50 mts (devido ao nevoeiro que mostrava sinais de querer subir), embora por vezes, conforme poderão constatar pelas fotos, esta aumentou para 100 mts e mesmo mais (efectuei a gestão da mesma em função do grau de perigosidade do terreno e das condições atmosféricas)

3-Como caminhar: foram dadas instruções para levantarem sempre bem os pés, não os arrastar, evitar os saltos, pousar um pé de cada vez nos locais mais difíceis, sendo que as pernas (coxas) atendendo ao grau de inclinação do terreno, deveriam ser utilizadas como amortecedores; em caso de dúvida sobre o terreno a pisar, sentar-se e prosseguir, agarrando-se ao que fosse possível (rochas, ramos, ervas, terra, cabos guia), etc…

Posto isto, iniciamos a caminhada e sem que os meus camaradas vissem, benzi-me e solicitei protecção divina, afinal sempre eram cerca de 10 kms em terreno acidentado e perigoso.

A caminhada inicia com a passagem por um túnel com cerca de 150 mts e que atravessa lateralmente a estrutura em betão, montada no topo do Säntis, acabando por desaguar num penhasco com quase 90° de inclinação. Aqui, realmente a visão assusta, tendo levado o meu camarada Orlando Gomes (homem do Norte e sem “papas” na língua) a tecer os seguintes impropérios “Car…o, Fo..-se”. Quanto ao “Newbie”, este estacou, ficou pensativo e apenas disse “Pessoal, hoje se calhar vai ser um bom dia para eu morrer.” (há coisas na vida de um homem, que podem ser pensadas, mas nunca pronunciadas, conforme irão perceber no desenrolar dos acontecimentos). Quanto a mim e porque só em mim confio, deu-me um misto de receio com “rush” de pela primeira vez estar a fazer algo de tão perigoso.

A título de curiosidade, sempre que parava para tirar fotos, sentia algumas tremuras nas pernas (efeito do binómio receio/adrenalina).

Lentamente e por vezes muito lentamente, lá fomos caminhando, concentrados e ofuscados por tamanha beleza. Eu como repórter de serviço, lá ia tirando os meus “shots”, o que me obrigava a ter de estar permanentemente a recuperar da distância que me separava dos meus companheiros (ossos do ofício).

Como em determinadas partes do trilho, seguíamos paralelos à linha do teleférico, aproveitei para documentar. Era sempre bonito, ver as pessoas no seu interior a fazerem-nos sinais de boa continuação.

Por vezes a paisagem parecia ter sido esculpida por uma qualquer entidade superior, tal era a perfeição das obras executadas.

Pouco antes de chegarmos à segunda torre do teleférico, eis que acontece ao “Newbie” aquilo que eu mais temia, mas que subconscientemente sabia que mais tarde ou mais cedo, acabaria por acontecer (Lei de Murphy vs Probabilidades).

Toda a gente tinha sido advertida para não efectuar saltos e levantar sempre bem os pés. Como devem calcular, o “Newbie”, cag.u pura e simplesmente para “cena” e de quando em quando era vê-lo efectuar pequenos saltos que nem uma cabra montesa. Acontece que este último salto, correu mal, o “Newbie” aterrou com um dos pés em cima de pedras pontiagudas, desequilibrou-se e pelo menos teve o bom senso, ou sorte de cair para o lado esquerdo. Para que tenham uma ideia da insensatez (para não chamar nomes mais duros ou brejeiros), apenas vos informo que se tivesse tido o azar de cair de frente, hoje já não estava cá para contar, pois a queda seria superior a 100 mts.

Perante esta “fantástica” ocorrência (estou a ser simpático) e como me encontrava ainda a alguma distância, de branco passei a encarnado, dirigi-me ao “Newbie” que por sinal já se tinha refeito do susto e fruto da adrenalina, não parava de saltitar como se nada tivesse acontecido.

Tenho idade suficiente para ser pai dele, pelo que passei-lhe tamanho raspanete que a partir daí as atitudes inconsequentes deixaram de se manifestar. Nunca mais falamos sobre este assunto.

Passado uma hora e meia sobre a nossa partida, finalmente atingimos Twerties (2’085 mts). Tínhamos planeado efectuar nesta pousada, uma paragem para retempero de energias e admiração das vistas, mas a mesma por ser época baixa, encontrava-se encerrada. A partir daqui deixamos para trás os trilhos e paisagens de rocha compacta para entrarmos em trilhos feitos de terra, muito cascalho à mistura e ainda com bastante neve.

O grau de inclinação do terreno também era elevadíssimo, conforme poderão constatar pelos instantâneos.

Nesta altura e constatando que o nevoeiro começava a subir, aumentamos um pouco à cadência, com receio de a partir de certa altura perdermos visibilidade, para além de que sabia que a partir das 16h45 já era noite.

Cerca de duas horas após termos saído da pousada, alcançamos a tão desejada meta. Abraçamo-nos, demos vivas e lá seguimos para Schwägalp, onde umas loirinhas nos aguardavam. Onde há um português, há sempre uma loirinha a acompanhar 😊.

Quero aqui deixar publicamente o meu agradecimento aos meus camaradas (Orlando Gomes e “Newbie”), pois sem eles, nada disto teria sido possível e agora já têm uma história para contar aos filhos e aos netos.

Não efectuei este trilho com o intuito de provar o quer que seja a mim ou a quem quer que seja, apenas o realizei porque se não o fizesse, iria passar o resto da vida a amaldiçoar-me. É minha convicção, que independentemente do local onde estejamos e dos meios postos à nossa disposição, devemos sempre tentar tirar o máximo proveito.

Sei que a crónica foi um pouco mais longa do que o habitual (peço desculpa, mas não sei escrever resumidamente).

À semelhança dos filmes, tentei criar através da escrita e das fotos, um ambiente que permitisse aos leitores sentirem, como se estivessem eles próprios a efectuar esta aventura.

Bem sei que há trilhos de montanha a maiores altitudes, mas esta foi e será a minha realidade por uns tempos. Adorei a experiência e voltava a repetir a mesma amanhã. Há imagens que valem por mil palavras e que me acompanharão para o resto dos meus dias.

Esta aventura serviu também para comprovar uma ideia que eu defendo “Para determinadas aventuras um grupo de um, é pouco, mas três podem ser demais”.

Confesso que o trilho é perigoso, daí os avisos, mas não será isso o “sal da vida”, o tal “to live on the edge” e como diz o povo sabiamente “de louco, todos temos um pouco”.

Este foi o meu último confronto com o Säntis, mas “we never know”. Outros desafios me aguardam.


Cumprimentos betetistas e até à próxima crónica…

Alexandre Pereira

Um Bravo do Pelotão, neste caso sem…

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