Já que o pecado mora mesmo ao lado, nada como pecar

Mal refeito ainda da primeira caminhada efetuada em alta montanha, eis que já pensava na segunda, pois o tempo está a ficar curto (condições meteorológicas vs disponibilidade).

Como disse na crónica anterior, estas aventuras viciam, quer pelo grau de dificuldade, quer pela adrenalina envolvida e respetivas sensações, quer pelas paisagens maravilhosas por onde caminhamos, etc…

Por norma sou uma pessoa que gosta de apresentar à comunidade em geral, obra feita e não meramente projetos (limito desta forma as expetativas), pelo que ao longo deste período não mencionei que já tinha uma segunda caminhada na forja.

Para esta nova caminhada, tinha duas alternativas óbvias, isto é, ou ia “alone” (não aconselhável, devido aos riscos envolvidos) ou ia na companhia do camarada Orlando Gomes.

“Newbie”, desculpa pá, mas tu és um home da City, man e não posso correr riscos desnecessários!

Sendo assim, durante a semana, lancei o convite ao meu companheiro, ao qual e como não era de esperar outra coisa, anuiu.

Programou-se a realização da volta para a terça-feira seguinte. Durante esse tempo, fui acompanhando as previsões meteorológicas para a zona e tudo apontava para um dia soalheiro.

Acontece que o meu companheiro não liga patavina à “Lei de Murphy”, pelo que na noite anterior, surge uma visita na nossa estância, que veio cobrar uma aposta, isto é, pelos vistos Mister Orlando, tinha combinado ir para a “copofonia” e afins, nessa mesma noite.

Colocou-se ao Orlando o velho dilema relativamente ao Säntis, “ir ou não ir” e na sua mente d’informático, arranjou uma solução matemática que passava por estar presente nos dois eventos.

Perante a sua proposta, tive mesmo de o excluir, uma vez que por experiência própria, sei como acabam no dia seguinte as noitadas e não podia correr o risco de ter alguém a acompanhar-me ainda a dormir e cujos reflexos não estariam a 100%.

Orlando, mein freund, tu estás Out e next time toma nota dos teus compromissos sociais!

O dia acordou radioso, com algum nevoeiro à mistura, mas nada que pudesse por em causa a aventura.

Cheguei a Schwägalp por volta das 10h30, tendo apanhado de imediato o teleférico que me levou ao topo do Säntis. Tinha previsto iniciar a volta pelas 11h00, sendo que a mesma duraria cerca de 5h30. A volta programada levar-me ia do Säntis (2’505 mts) até Wasserauen (850 mts), sem antes passar por Schäfler (1’923 mts) e Ebenalp (1’644 mts). A cordilheira que pretendia atravessar, encontra-se numa das fotos. Esta volta, à semelhança da anterior iniciaria com a famosa passagem pelo túnel e consequente descida abrupta que nos cria calafrios na espinha.

Quando subi no teleférico e porque o dia prometia, era notória a quantidade de turistas que se deslocavam ao topo (just to see the sights).

Iniciei o meu périplo com cuidados redobrados (afinal estava por minha conta e risco) e passado cerca de 500 mts chego ao local (bifurcação) que me introduziria na rota pretendida, mas eis que me deparo com um problema que aparentemente parecia fácil de transpor. O local, que fica numa encosta com um declive maluco, encontrava-se coberto de neve.

A primeira sensação foi (OK, isto não é nada, é apenas neve!), mas depois de começar a pisar a mesma, constato que afinal numa primeira fase terá sido neve, mas agora era gelo (pedra mesmo). Como forma de apaziguar a minha mente, ainda tentei escavar a mesma com a ajuda das botas, para verificar se havia forma de ter aderência; mas népias.

Não conforme, com a situação, sento-me na base dessa plataforma de gelo e com as pernas a tremer (adrenalina vs declive acentuado, em caso de erro, morte do artista), começo a descer alguns metros, arrastando a “padaria” e aproveitando as marcas, agora congeladas, deixadas por montanhistas anteriores que efetuaram o trilho a subir, de forma a verificar o grau do problema.

Chego à triste conclusão que era impossível efetuar a descida, sob pena de ir “parar aos anjinhos”.

Neste entretanto no topo do Säntis, estava uma multidão a conjeturar ou a aguardar por um suicídio ou acidente em direto. Por questões de proteção e segurança, o meu quispo de montanha é vermelho, assim como a mochila, pelo que não passava despercebido no meio daquela neve.

Olhei para eles e pensei para comigo (Querem espetáculo, ora aqui vai!). Saio da zona de proteção do trilho e subo cerca de 10 mts na encosta adjacente e ponho-me a mirar o meu problema, a ver se encontrava uma solução, isto porque para meu erro, da última vez que cá estive, não acautelei devidamente esta questão.

Lá em cima, a malta devia estar a pensar (Aquele tipo, deve ser mesmo marado, para estar a agir daquela forma), enfim. Só eu sabia o conflito interno que estava a viver “arriscar, não arriscar, mas o que é que ganhas com isso, afinal é só mais uma volta e se tiveres um acidente ou mesmo morreres, não estarás cá para contar”. Ao fim de meia hora (diabo, como o tempo corre nestas alturas) e porque também sou marido e pai de família, lá resolvi regressar à base, mas acreditem que esteve iminente o cometimento de uma loucura. É nestas alturas que o bom senso e a meditação fazem a diferença, perante uma adversidade.

Meti o “rabo entre as pernas” e lá voltei a fazer o percurso inverso, agora sim, muito mais à vontade (é minha opinião que tecnicamente, é sempre mais fácil subir do que descer, até no BTT).

No topo do Säntis, saco dos meus mapas em 3D da zona e toca a programar uma volta alternativa e que me levasse ao destino final (Wasserauen). Enquanto isso o relógio não parava de contar e a “coisa” estava difícil porque ou não dispunha de tempo suficiente para apanhar no final transportes de ligação à minha estância, ou porque os trilhos eram para “alpinistas”, ou porque tinham ainda muita neve, ou porque aquela sensação de estar sozinho, vinha a ganhar terreno sobre o meu ego, lançando-me dúvidas sobre as diferentes opções em análise.

Estive meia hora a tentar traçar uma rota e estava quase para desistir, quando vejo um montanhista, por sinal sozinho e com ar muito seguro, transpor o acesso que conduzia ao local onde estava a escavadora e o hotel. Ponho-me a observar o individuo em questão (Vamos ver por onde é que vais seguir, meu caramelo! terei eu pensado). O sujeito, devia conhecer aquele trilho como as palmas da mão, pois em nenhuma altura vacilou.

Com base na observação feita ao montanhista, tentei imaginar a sequência lógica do trilho (se é que há alguma) e pelos vistos este trilho levar-me ia ao meu destino. Dei um compasso de espera e lá arranquei.

O trilho era perigoso Q.B., com zonas muito inclinadas, com muito gelo em algumas partes, nada a que já não estivesse habituado, ehehehehe…, mas agora e por me encontrar sozinho, caminhava com o dobro da atenção e com todos os sentidos em alerta vermelha.

Ao longe, vislumbrava de perfil o Wagenlücke (2’072 mts), (mais uma montanha, pensava eu, mal sabendo o encontro Twilight Zone que me aguardava) e passado uma hora e meia, atingi esse ponto.

Chegado ao local eis que tenho “um encontro imediato de 3º grau” com o Adamastor, sim, essa figura lendário, imortalizada por Camões. Neste caso o “ovni ou alienígena” era eu, uma vez que esta montanha, sempre cá esteve.

É nestas alturas que o adágio popular “Há males que vêm por bem” soa como música na nossa mente. Documentei este fenómeno e o mesmo confirma aquela ideia do senso comum, que por vezes temos sorte ou azar em estar no local certo à hora certa. Neste caso foi um privilégio, presenciar tal fenómeno (luz vs sombra), conforme poderão constatar pelas fotos.

Este ponto do trilho permite efetuar a transição duma encosta para a outra. Neste ponto, o meu “guia”, acabou por seguir outro trilho. Obrigado e vai em paz.

A partir daqui, temos uma visão panorâmica e em profundidade, onde já era possível ver ao longe a pousada de montanha Mesmer (1’613 mts). Para lá chegar, tinha de vencer perto de 500 mts de desnível e entrar no vale que lhe dá acesso. Zona muito bonita, recordou-me a volta 026 realizada por alguns bravos na Serra da Estrela.

Enquanto caminhava, o silêncio era total. Por vezes parava somente para escutar o nada. A certa altura ouço assobios, seguidos de ruídos que mais pareciam uma avalanche de pedras. Olho para a esquerda, olho para a direita e nada, até que me ocorre olhar para o cimo da montanha do lado oposto e aí sim a +/- 600 mts, vi pela primeira vez meia dúzia de cabras montesas em amena cavaqueira. É impressionante a rapidez com que se deslocam nestas escarpas, sem qualquer tipo de vertigens. Claro que ao saltarem, deslocavam pequenas pedras, que ao rebolarem pela encosta abaixo e associadas ao eco, criavam a sensação de estarmos perante uma avalanche. Pude constatar ainda, que comunicavam entre elas através de silvos (assobios).

Foi nesta zona que pela última vez, cruzei com humanos.

Uma hora após ter estado com o Adamastor, cheguei à pousada de Mesmer e mais uma vez por ser época baixa, estava encerrada. Tirei neste local em minha opinião, a melhor foto deste trilho, pois é bem patente a distância que me separa do Säntis, assim como os obstáculos que tive de ultrapassar.

Como o lugar era convidativo, acabei por meter alguma coisa ao “bucho”, afinal já passava das duas da tarde.

A beleza desta volta residia no facto de que quando se atingia um ponto, conseguia-se ver o próximo ponto a seguir, neste caso o lago Seealpsee (1’141 mts). Para lá chegar tinha de vencer um desnível, novamente, próximo dos 500 mts, efetuado num trilho, mesmo muito sinuoso, já que se descia muito em tão pouca distância, logo atenção redobrada.

Chegado ao Seealpsee, para meu espanto, estava um frio de rachar, com temperaturas perto ou mesmo abaixo dos 0ºC, pois parte do lago estava gelada. Não tirei muitas fotos, nem perdi muito tempo no local, uma vez que já tinha documentado o mesmo aquando da realização da crónica 005. Era sim notória, a ausência de vida (pessoas) neste local, estava tudo encerrado, um autêntico deserto.

De seguida, segui em direção a Wasserauen (868 mts), sendo visível o nevoeiro (característico nesta altura do ano, nas zonas abaixo dos 1’000 mts), por onde teria de caminhar.

Wasserauen para quem não conhece esta zona, é o final de uma das linhas de Metro que liga a Appenzell. Cheguei ao local por volta das 16h00. A estação é um cubículo e na linha já se encontrava um comboio, que passado 20 minutos iria arrancar com destino a Appenzell.

O cenário era digno de um filme de terror. Nevoeiro com fartura, comboio vermelho na linha a aguardar a partida, motorista a dormitar no interior da cabine e eu como único passageiro. Só faltava aparecer mesmo, um zombie de faca ou motosserra em riste 😊.

Mais um trilho fantástico, que aconselho vivamente a quem por estas “bandas” andar.

Embora só e com muitas dúvidas a “azucrinarem-me a moina”, consegui mais uma vez, ultrapassar todas as vicissitudes com que fui deparando. Talvez tenha tido sorte, uma vez que esta favorece os audazes 😊.

Parafraseando Alexandre o Grande “Nada é impossível para aquele que persiste” e não posso estar mais de acordo.


Cumprimentos betetistas e até à próxima crónica…

Alexandre Pereira

Um Bravo do Pelotão, neste caso sem…

Podem visualizar esta crónica com os respectivos comentários às fotos no FORUM BTT. Ler o Post (resposta) #94.