No Barrage d’Emosson compreendi que quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos…

Diz o senso comum que quando um homem anda bem entretido, não dá pela passagem do tempo e para o caso é bem verdade, isto porque me apercebi apenas agora, que já passaram mais de sete anos desde que por estas bandas andei.



Na altura tinha arrancado de “Finhaut” a 1’230 mts em direção à “Barrage d’Emosson” a 1’930 mts, e a ideia, tal como agora era subir depois até à “Barrage du Vieux Emosson” a 2’212 mts.


Na altura não pude subir à segunda barragem porque estavam a realizar obras de envergadura e o acesso estava vedado, vai daí, tentei realizar uma “circumbetetação” ao lago.

Apenas consegui chegar à extremidade do lago, isto porque a partir daí o trilho deixava de existir.

Já nessa altura, o regresso foi atribulado (ver fotos da Crónica 048 no site BdP).


Para quem não sabe, realizei esta volta agora, já que no dia seguinte estavam previstas as primeiras quedas de neve na zona. Convém não esquecer que agora os dias são muito mais curtos e também muito mais frios (vão entender mais tarde o porquê destes dois detalhes 😊).


O dia apresentava-se soalheiro com temperaturas a avizinhar os 0°C. Chegado a “Martigny” a 461 mts, teria de mudar de comboio e apanhar o que me conduziria a “Finhaut.


Primeiro azar do dia, afinal o comboio só ia até “Le Trient” a 1’024 mts, segundo o que estava escrito numa folha A4 afixada nos vidros. Na altura achei estranho apenas estarem no interior meia dúzia de gatos pingados e de vez em quando, reparava que grupos de caminheiros entravam para de seguida saírem em urgência 😊.


Fiquei mais sossegado quando ouvi uma gravação informar que o comboio ia somente até “Le Trient” e que havia um autocarro que fazia a ligação direta até “Finhaut”.


Quando o comboio chegou ao destino, achei estranho assim como os restantes utentes de não vermos o tal autocarro. Indaguei junto do condutor e este informou-me que afinal o autocarro arrancava diretamente de “Martigny” com destino a “Finhaut”, aliás, fiquei com a ideia que nos chamou de burros e acreditem que não estou a falar do engenho utilizado para tirar água de poços ou rios, por meio de baldes 😊. Dizia ele que a mensagem audível era clara e explicita, ao que retorqui que se assim fosse, eu e mais oito pessoas não tínhamos embarcado no comboio e saído aqui. Explicou-me ainda que como o autocarro era dos grandes, não podia utilizar a estrada que nos trazia até aqui, pelo que ia por outra estrada que fica do outro lado do vale.


Falar para o motorista e falar para uma parede era o mesmo. Enquanto o resto do pessoal, bufava e barafustava com este, aproveitei para consultar o Google Maps que me informava que demoraria cerca de 1h15 a pé ou 40 minutos de bicla até atingir o meu destino, ponto de arranque da volta.


Despedi-me dos meus amigos de infortúnio e lá me fiz ao caminho. Aqui e além, tal uma borboleta, fui tirando chapas e por diversas vezes fui apanhado e ultrapassado por um grupo de 4 caminheiros que se deslocava para a barragem.


A determinada altura, aquando de uma pausa para reabastecimento, passaram por mim duas “gravels”. Para quem desconhece, é a nova moda por estas bandas, isto é, são bicicletas com quadro tipo fininha (mais robusto, diga-se de passagem), mas com pneus mais grossos. Pessoalmente, excita-me mais o conceito de uma “gravel” do que uma bicla de estrada, talvez por continuar a poder rolar no monte. Quiçá um dia, não passo para o lado obscuro da força 😊.


Como não podia deixar de ser, confesso, sou impossível, meti conversa com o pessoal e falamos do BdP (todas as ocasiões são sempre boas para promover Portugal e o site Bravos do Pelotão. Por falar nisso, deixem-me tomar nota que não posso esquecer de mandar fazer cartões de visita BdP).


A verdade é que, ou eu sou muito lento, ou o Google Maps, não estava bem calibrado, pois demorei 1h30 a chegar a “Finhaut”, ou seja 1h30 de atraso em relação ao início da volta a realizar (atentem a este pormenor).


Quando cheguei à “Barrage d’Emosson” a 1’930 mts, eram quase 14h00. Aproveitei para tirar umas quantas chapas e encontrei novamente o grupo de caminheiros com quem tinha cruzado no arranque. Estes aproveitavam os raios de sol para se aquecerem que nem lagartos.


Tal como eu e visto o avançar da hora, estavam a pensar se valeria a pena ou teriam tempo para subir à segunda barragem “Barrage du Vieux Emosson” que ficava a 2’212 mts. Não esquecer que falamos de +/- 5 kms sempre a subir, para vencer um desnível de +/- 280 mts, sendo que na parte mais íngreme, subimos 190 mts de desnível em apenas 1 km.


Pelos meus cálculos iria necessitar de mais de uma hora para ir e voltar, assim sendo, decidi apenas ir fazer um pequeno reconhecimento, como se diz na gíria, tirar a barriga de misérias, e lá fui para outro lado, tirar umas chapas.


Claro está que em várias ocasiões me passou pela cabeça ir lá acima, mas estes vibes foram logo postos de lado, devido ao frio de rachar que se fazia sen

tir, chegando a conversar com os meus botões que quanto mais depressa acabasse, mais depressa saia dali.


Assim dito, assim feito e já passava das quinze quando iniciei o processo de regresso. A ideia era chegar à estação de “Martigny” onde apanharia o comboio de regresso, antes do escurecer do dia, que sabia de antemão, iria acontecer pelas 17h15.


Feitas as contas, achei que 2h15 seriam suficientes para realizar os cerca de 23 kms e 1’500 mts de desnível sempre a descer.


O problema como podem constatar pelas chapas, é que o trilho a descer, não era assim tão fácil, para além de que facilmente me deixo inebriar pelas paisagens e à semelhança do colibri, tenho de debicar aqui e além (fotograficamente falando).


Ao longo do trilho, foi sempre estando atento ao avançar da hora, ou como diz a malta do Sul “com um olho no burro e outro no cigano”. Não via a hora de chegar aquele chalet d’alpage que se vê nas últimas fotos, pois sabia que a partir daí entraria num estradão rolante que me conduziria em menos de 15 minutos a “Finhaut” e daí era sempre a bombar até “Martigny”.


Chegado a “Finhaut”, não sei o que me passou pela cabeça, pois ao invés de repetir o caminho que me conduz em sentido contrário a “Le Trient” e daí até “Martigny” pela estrada, acabei por apanhar a estrada asfaltada que em 2013 me tinha levado ao meu destino e pensando eu, tratar-se de um atalho.

O subconsciente prega-nos partidas destas por vezes, vá se lá saber porquê.


Como vinha em alta velocidade, e pensando que estava correto, deixei-me ir, feliz e contente, sempre a descer, até que 5 kms e 300 mts de desnível negativo mais à frente, reparo que o GPS me manda sair da estrada e ir por um trilho manhoso, tipo atalho (mais um) para alcançar uma estrada mais em cima que me conduziria a “Martigny”.


Resolvi parar e como o tempo não para, achei melhor não fosse o diabo tecê-las (sempre tentei evitar os acidentes em alta montanha e não era agora que me iria deixar atropelar 😊), colocar as luzes de presença (frente e trás).


A partir de certa altura o trilho entrava pelo monte acima (tipo trilho de caminhada) e que remédio não tive senão seguir em frente com ela à mão, nem vos conto, como foi subir 150 mts de desnível em cerca de 500 mts.


Chegado à estrada, começo a ter flashes do passado e aí nesse momento confesso que dei por mim a pensar “estás fod..o e bem fod..o, meu caro amigo”. Reduzindo a área do GPS, conseguia perceber que estava a caminho do destino, mas que ainda estava a cerca de 25 kms.

Pois é, com esta brincadeira, tinha atravessado para o outro lado do vale, daí o aumento da distância. A partir daí, e porque tenho sempre tendência a pensar que as coisas vão melhorar, ainda pedalei por mais um quilometro até que o GPS não sei por que carga d’água, deixou de emitir. Embora ainda com mais de 50% de carga, o mapa simplesmente desapareceu e nem reiniciando voltava a dar sinal, não sei se o fato de me encontrar perto da fronteira francesa teve alguma coisa a ver para o caso. Toca a sacar do Iphone (tinha lá o track instalado no Google Earth) e aí, sim, de uma vez por todas, senti pela primeira vez a morte do artista e que realmente estava numa mer.a “pas possible”.


Quem me conhece, sabe que sou uma pessoa analítica e pragmática, pelo que não é necessário ser um rocket scientist, para compreenderem o porquê de ter ligado à minha fantástica wife para me vir recolher.

Digo fantástica, porque não é qualquer uma que um sábado quase a escurecer, recebe uma chamada do dito cujo, a solicitar-lhe que largue o que está a fazer e se meta no carro, carregue um destino no GPS e efetue 120 kms (para cada lado) = 1h30 de viagem (para cada lado), e tudo isso with no angry. Assim Deus ma guarde por muitos e longos anos 😊.


Pequeno point de situation:


- Os poucos carros que passavam, faziam-no a todo gás, estando sujeito a ser atropelado

- Muito dificilmente poderia fornecer indicações exatas a quem me viesse recolher

- As luzes de presença não aguentariam a viagem até ao destino

- A temperatura baixou bastante e o frio tinha aumentado de intensidade

- Dentro de 45 minutos estaria escuro e depois é que nem para a frente, nem para trás

- Se prosseguisse a vigem por esta estrada, teria de vencer um desnível bastante grande

- Estava cansado, mas ainda com energia suficiente para fazer meia volta e regressar a “Finhaut” (dava para meter no GPS)


Foram todos estes fatores que me conduziram a ligar para aquela com quem partilho a minha existência, já lá vão 26 anos.


Depois de finalizar a chamada, fiz-me à estrada e acreditem que nunca amaldiçoei tanto uma subida. De longe a longe, lá ia passando por mim um carro, pudera quem é que aquela hora do dia andaria por aquelas cercanias. É nestes momentos que um homem se sente um verdadeiro “Robinson Crusoé”.

Afinal tive sorte, porque só ficou escuro como breu pelas 17h30. Tive, portanto, luz suficiente até chegar à estação de comboios de “Finhaut” que como indicado estava em obras.

Quando lá cheguei, não se via vivalma, apenas encontrei uma pessoa que por sinal estava a aguardar a chegada do famoso autocarro vindo de “Martigny”, alembram-se?


Aposto que devem estar a pensar o mesmo que eu, porque é que mandaste vir o reboque se tinhas autocarro?

Como vim a verificar mais tarde, o dito autocarro, a estas horas, não passava de uma carrinha de nove lugares e por experiência sei que os motoristas não aceitam biclas, mesmo havendo espaço e desmontando a roda da frente. De qualquer forma a minha esposa, vinha a caminho.


Para quem desconhece, “Finhaut” e a própria estação de comboios (ver sétima foto, assinalei com seta vermelha) ficam numa encosta e daí consegue-se ver o outro lado do vale, onde tinha estado anteriormente e por onde em princípio a minha esposa iria vir.

Enquanto esperava e acreditem, uma hora e meia quando um tipo não tem mais nada que fazer é mesmo muito tempo; aproveitei para meter alguma coisa no bucho, atestar de água a mochila, meter o tapa orelhas e o tapa rosto para qualquer eventualidade e para finalizar calcei umas luvas mais grossas.

Nos pés não tinha frio porque andei todo o dia calçado de meias grossas e botas Northwave. No resto do corpo também não tinha frio porque por debaixo das calças tinha umas meias calças e por debaixo do casaco d’inverno, tinha 2 camisolas e um jersey.


Com o passar do tempo, o corpo começou a ressentir-se deste abaixamento da temperatura e para remediar, não tive outra solução que começar a andar para trás e para a frente, saltitar, dançar, etc…

Consigo imaginar a cara dos habitantes das redondezas que estavam nas escarpas por cima da gare, quando viam este energúmeno nestas tristes figuras 😊, mas como disse alguém, a man's gotta do what a man's gotta do'.


Pela primeira vez em anos de Terras Helvética, consegui ver estrelas no céu, tal como quando estou em Portugal. Consegui ver a Ursae Majoris e pude constatar e compreender que esta solidão que se sente, nestas noites na montanha tem outro sabor. Melhor que tentar explicá-lo, há que vivê-lo.

Por vezes ao olhar ao longe, via luzes vermelhas do outro lado do vale e pensava para comigo. Meu Deus, fazei com que seja a minha esposa!


Hora e meia passada e não vendo ninguém chegar, liguei para o meu reboque e vim a descobrir que andava perdido, não muito longe da minha posição (sempre relativo, como vim a constatar). Afinal o GPS do carro mandou-a seguir por um atalho (mais uma vez a m..da dos atalhos) que iria poupar-lhe kms, mas que a obrigou a subir um trilho feito para carros com tração às quatro (este até é) e condutores com unhas (ela até toca guitarra 😊).


Eram 19h00 quando o reboque chegou. Je vous passe les détails de meter a bicla dentro do carro.

Apesar de tudo, não me posso queixar, uma vez que pelas 20h30 estava em casa.


Vamos aos dados da volta.


- Altitude máxima – 1’970 mts

- Altitude mínima – 1’024 mts

- Acumulado de subida – 1’888 mts

- Acumulado de descida – 1’689 mts

- N° total de Kms – 34 kms


Quero aqui deixar publicamente e por escrito o meu agradecimento à minha fantástica wife e termino esta crónica parafraseando o poeta inglês Alexander Pope “Um homem nunca deve sentir vergonha de admitir que errou, o que é apenas dizer, noutros termos, que hoje ele é mais inteligente do que era ontem”.


Cumprimentos betetistas e até à próxima crónica…


Alexandre Pereira

Um Bravo do Pelotão, neste caso sem…

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